"A verdadeira errância, dizia-se Orlando quando ainda se falava consigo, era da ordem do desvario e ele nem ainda uma só vez perdera o tino. Fora uma escolha assisada entre perder-se nos confins da Ásia de luxo onde um mulato peralta e adolescente daria nas vistas hostis e perder-se nas hordas do trabalho braçal, ameaçado e bem-vindo, à vez. Extenuado, emudecido, oculto numa identidade e num silêncio mental de pária , oculto nas baixas tarefas de onde podia desaparecer sem rasto, ao risco de greve, sublevação, linchamento, tão calado ao insulto como à fraternidade, mentindo a origem, ocultando o crime e o destino nos mesteres mais duros e mais imundos. Preso por um fio de oiro, Pixim d'Or, mas solto na escória de um continente, portuga e preto, pau para toda a obra a interpretar-se bronco e dócil. Que desempregado ariano com subsídio quereria refocilar em tamanha dejecção? Não quiseste escolher, és escravo, lembrara ele quando pensava ainda.Orlando, ora Emílio ileso aos detectives, não era escravo. Sobrevivia bem ao estridor de tanta matraca de trabalho duro. A tanta invenctiva dura. Nada o suplantava, ninguém. As mãos são de lixa, os pés de crosta, o chão mais baixo dez centímetros, o corpo, esguio embora, empedreniu.
Um ano atrás, um ano inteiro, um só golpe de machada teria bastado para estalar até à goela aquele crâneo liso.
Acorda, Orlando-Emílio, com a estranheza de ser sempre em outro tempo e lugar."
Maria Velho da Costa - Irene ou o Contrato Social, 2000 (a oito páginas da folha cativa)
Acabado de ver, com uma série de crimes noutras...
1 comentário:
A Maria Velho da Costa é areia de mais para a minha camioneta.
Valha-nos "São Tarantino"...
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