«Interrogações abrem dúvidas no unanimismo à volta do humanismo. Uma atenção mais aguda descobre um curioso fenómeno: quando a função do discurso humanista se exerce para resolver problemas e fechar discussões em que se estava a esquecer o homem, ninguém pergunta mais nada, mais nenhuma questão se levanta, como se o apelo ao homem acabasse com todas as dificuldades. Quer dizer, como se o conhecimento que se tem do homem reduzisse a zero a ignorância que fez nascer o problema. Ora, é do homem que nós não conhecemos quase nada. É, no fundo da nossa ignorância, quanto ao ser humano, que geralmente nasce o problema. Que sabemos nós do seu psiquismo, do seu corpo, das relações que se atam entre o corpo e a psique; que sabemos nós dos fenómenos sociais, da causalidade do crime, da guerra, do mal? (Lembremo-nos do tom de desespero da carta de Einstein a Freud sobre o mal-estar da civilização...)
Em resumo, o apelo à tomada de consciência do valor central do homem, em vez de fechar os problemas com falsas soluções, deve abrir mil outros debates: que homem queremos, quando (com as novas tecnologias, com a engenharia genética) se deparam futuros alternativos? E estes são ainda puras simulações grosseiras.. O que é bom e mau para o homem? E se o descentramento do homem no universo representasse um bem? Não foi Lévi-Strauss que afirmou que uma das desgraças maiores – do ponto de vista de uma ecologia do espírito – que as sociedades não primitivas trouxeram ao homem foi o de o situar no centro do universo? E de, assim, desvalorizar a natureza e os outros seres vivos, arrancando-lhes o homem para o colocar nun lugar de eleição? Uma boa crítica descentralizadora do discurso humanista não traria afinal benefícios ao homem?
Em Portugal, o discurso humanista ajuda a não pensar. Panaceia universal para todos os males, vive do círculo que acabámos de descrever. O apelo à acção para o bem do homem e da humanidade supõe aquilo mesmo que queremos saber: o que é o homem? Que homem poderemos forjar no futuro? O que é “bom” para o homem e para a mulher? Como o conhecimento da natureza humana, e do que para ela é bom e mau, nos escapa, mas está pressuposto nas ideias humanistas, o discurso que as exprime é vazio. E o apelo ao “Homem”, excepto em casos_limite evidentes (fome, devastações, massacres, etc. – e nestes casos não é sequer necessário recorrer ao “Homem”), revela-se ineficaz e retórico. Quando já não lhes convém, quando deixa de lhes servir de álibi, forças poderosas varrem de uma penada o discurso humanista.»
José Gil (2005) Portugal, O medo de existir pela Relógio d’Água
4 comentários:
O humanismo?
É apenas, tantas vezes, uma corrente de ir e voltar. Uma atitude de amarrar e dar liberdade entre o centro e as periferias do Homem...
Pois!!!
Um abraço peludo.
Excelentes questões! Excelentes questões!
Abraço!
Quando li este homem (há dois anos), achei que estava perante o sumo pontífice do pensamento filosófico em Portugal. Hoje voltei ao Eduardo Lourenço de sempre, mas ainda gosto muito muito do que diz Gil.
Os dois lados: o cabo e a ponta do gume, SP.
Oh, Sócrates, volta, volta, VOLTA!!! (Abraço, pq vais ler isto, eu sei)
Há ir e voltar... e pelo meio descobrimos muitos outros para poder comparar: sim C., o lourenço ainda está num plano superior de abrangência do real (nele vou "mergulhar" um pouco mais...) português.
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