«Quando se deixaram, Querelle amava Gil...
Querelle devotava à sua estrela uma confiança absoluta. Essa estrela devia a sua existência à confiança que nela tinha o marinheiro – ela era, se quiserdes, o esmagamento na sua noite do raio da sua confiança precisamente na sua confiança, e, para que a estrela conservasse a sua grandiosidade e o seu brilho, isto é, a sua eficácia, Querelle teria de conservar a sua confiança nela – que era a confiança em si mesmo – e, principalmente, o seu sorriso, a fim de que nem a mais subtil nuvem se interpusesse entre a estrela e ele, a fim de que o raio não perdesse energia, a fim de que nem a dúvida mais ténue embaciasse um pouco a estrela. Permanecia suspenso dela, dele nascida em cada segundo. Mas ela protegia-o efectivamente. O receio de a ver embaciada gerava nele uma espécie de vertigem. Querelle vivia a toda a velocidade. A sua atenção tensa, para alimentar a todo o momento a estrela, obrigava-o a uma precisão de movimentos que uma vida branda não teria obtido dele (e para quê, nesse caso?). Sempre alerta, via melhor o obstáculo e o gesto ousado que devia fazer para o evitar. Só fraquejaria quando estivesse esgotado (se isso alguma vez acontecesse). A sua certeza de possuir uma estrela provinha de um entrelaçado de circunstâncias (que chamamos uma felicidade) tão ocasional, ainda que organizado, e de tal modo – pois que em rosáceas –que nos sentimos tentados a procurar nele uma razão metafísica. Muito antes de pertencer às tripulações da esquadra, ouvira Querelle a canção intitulada A Estrela do Amor:
Todos os marinheiros têm uma estrela
Que no céu os protege e lhes acode
Quando aos seus olhos nada a vela
O infortúnio contra eles nada pode.»
Jean Genet – Querelle de Brest (1953) Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues, pelas Publ. Europa-América. Pág.159/60
Emprestado do Amor
2 comentários:
Cena maravilhosa de um filme maravilhoso, realizado por um maravilhoso director (Fassbinder) e inspirado num maravilhoso livro de Genet.
obrigado por partilha tão bonita
Enviar um comentário