19 outubro 2008

Englar_Alheimsins*

“1. Já depois de ter dado entrada no Kleppur, o hospital psiquiátrico que se ergue à beira-mar, como um enorme palácio, veio-me à memória um dia cinzento de nevoeiro em que eu, ainda criança, estava numa rua esburacada a olhar para as casas e para as poças de água.
Subitamente, vi um senhor de meia-idade sair de uma das casa e descer as escadas, molhadas da chuva. Com ele vinha o filho, um rapaz esguio, na casa dos vinte.
O filho tinha cabelo escuro e ondulado. Vestia um casaco de cabedal curto, com gola de pele, enquanto o pai usava um corta-vento claro e calças largas, limpas.
O pai agarrava o filho pelos ombros, empurrando-o para a frente com impaciência. Os punhos da sua camisa de xadrez apareciam sobre as mangas do corta-vento e os cabelos, no nevoeiro, revelavam uma estranha falta de cor.
Quando chegaram ao meio da rua, corri em direcção a eles e gritei ao pai:
- Para onde é que o vai levar?
O pai virou-se, sem largar o ombro do filho.
- Para o Kleppur – respondeu com rispidez.
Vi que a testa, húmida, brilhava. A expressão do rosto era como um ranger de dentes. Por detrás do negrume dos olhos, ardiam chamas.
E desapareceram no nevoeiro.
Foram engolidos, como nas lendas misteriosas que a minha mãe me contava ao deitar e que começavam quase todas com as palavras: «Era uma vez, há muito, muito tempo,...»
Em tais lendas, pessoas despareciam para dentro de pedras e rochas, ou perdiam-se pelos caminhos, na escuridão das florestas, enquanto as estrelas cintilavam no céu.
Cintilavam como inúmeros olhos brilhantes, lá fora, na escuridão; escuridão essa que mais tarde haveria de pairar sobre mim, sem estrelas nem luar.
Nunca mais voltei a ver o pai ou o filho, e até hoje ponho em dúvida se este incidente terá realmente ocorrido.
Se eu estava a olhar para outro mundo, era real aos meus olhos; se, porém, era a realidade, não a compreendo de forma alguma.

Talvez compreenda tão pouco a realidade como a realidade a mim. Neste aspecto, estamos quites. A realidade, no entanto, não me deve explicações, e eu cumpri com o que lhe devia.
Seria bom poder, simplesmente, responder como fez o filósofo alemão Hegel, quando alguém lhe disse que as suas teorias não estavam de acordo com a realidade: «Coitada da realidade, tenho pena dela.»
Os poetas podem escrever assim.
Os filósofos podem falar assim.
Mas nós, que estamos internados em hospitais e fechados em instituições, não temos resposta alguma quando as nossas ideias colidem com a realidade, pois, no nosso mundo, são os outros que têm razão e sabem discernir o que está certo e o que está errado.

A nuvem de medicamentos paira no ar, como se os dias estivessem parados.
- Páll!
Assusto-me ao ouvir o meu próprio nome, mas não há reacções visíveis; estão longe, muito longe, no interior da nuvem que paira no ar.
Nas profundezas dos olhos, a tranquilidade não tem fim.
Na fria bonança, a tempestade.



2. Eu era um cavalo louco aos olhos da eternidade. Mais tarde, quedava-me deitado a olhar o céu.
E o sol penetrava o meu coração.
E as chamas do encanto ardiam...”

Einar Már Gudmundsson – *Anjos do Universo 1993 (publicado pela Canguru em 2003)
Em comemoração do dia mundial da saúde mental - e por memórias ao pequeno-almoço.

4 comentários:

Socrates daSilva disse...

"Os poetas podem escrever assim.
Os filósofos podem falar assim."

E um bom blogger pode fazer citações assim...

Abraço!

Nonoras disse...

Ainda bem sinto que, hoje, a realidade aos poucos se vai alterando... e cada vez se tenta dar mais ouvidos e fazer valer a voz a todas as pessoas que com doença mental...

Kapitão Kaus disse...

Uma boa semana para ti!:)

Aproveita o sol, que está bastante sol, mas muito, muito frio!

Abraço:)

AFSC disse...

Citação interessante...
Tudo de bom...