"Eu fiz-me escritor por causa da pobreza, da solidão e dos gelados. Era filho único de uma família da classe média muito baixa; na verdade, de uma família muito pobre de Jerusalém. O meu pai era biblotecário e a minha mãe, de vez em quando, dava aulas particulares de História e Literatura. Vivíamos num apartamento diminuto que se parecia com o interior de um submarino, cheio de livros em muitas línguas e pouco mais. Os meus pais encontravam-se com os amigos nos cafés. E levavam-me com eles porque era filho único e não tinham ninguém com quem me deixar em casa. Diziam-me que tinham de conversar com os amigos e que eu devia portar-me bem e, se o fizesse, no final haveria um gelado para mim. Bem, naquele tempo, o gelado em Jerusalém era mais raro do que a paz no Médio Oriente hoje em dia. Era um boato, uma lenda: só alguns felizardos podiam desfrutar dele.
Eu morria pelo gelado, mas os meus pais costumavam demorar-se a conversar com os amigos durante sete dias e sete noites sem parar, ou, pelo menos, era o que me parecia. E tinha que fazer alguma coisa para não gritar nem ficar maluco. Assim, sentava-me ali e observava o movimento do café como um pequeno detective: gente a entrar e a sair... Como um pequeno Sherlock Holmes, reparava nas roupas, nas caras, nos gestos, estudava os sapatos, contemplava os bolsos e costumava passar o tempo a inventar pequenas histórias sobre aquela gente. Quem vem, de onde vem, qual a relação exacta entre aquelas duas mulheres e o homem da mesa do canto; as duas mulheres fumam, o homem não; uma parece muito amargurada, o homem quase não fala; uma fala a maior parte do tempo, a outra é bastante silenciosa. Tinha de inventar uma história. Algo assim: um jovem de aspecto temível, alto, estranho, sentado perto da porta, com um jornal em frente, sem o ler. Olha em direcção à porta, espera. Uma, duas horas. Bem, pode não estar à espera de um gelado, está à espera de alguém. E eu inventava quem e porquê. E assim aprendi de alguma forma a morigerar a minha solidão, olhando para as pessoas, advinhando, inventando, às vezes escutando ao acaso fragmentos de conversas e unindo-os, como um homem da Stasi. Pequenos pormenores de informação para criar, por vezes, um historial incriminatório. Devo confessar que ainda hoje faço o mesmo quando tenho de “matar o tempo”, por assim dizer, num aeroporto, sentado na sala de espera do dentista ou de pé numa fila. Em vez de ler jornais ou coçar a cabeça, fantasio. É claro que algumas das minhas fantasias actuais não são tão inocentes como as minhas fantasias infantis dos dias do gelado. Mas ainda fantasio. É um passatempo útil, não só para um romancista como para qualquer um de nós. Acontecem tantas coisas em cada esquina, na fila de cada paragem de autocarro, em cada sala de espera de uma clínica, em cada café... Na realidade, muitos seres humanos atravessam o nosso campo de visão todos os dias e na maior parte das vezes não suscitam o nosso interesse: nem sequer reparamos neles, vemos silhuetas em vez de gente real. Por issso, se tivermos o costume de observar estranhos, com um pouco de sorte acaba-se por escrever histórias ao fantasiar sobre o que as pessoas fazem entre si ou sobre a relação que existe entre elas. Em todo o caso, sempre se pode passar um bom bocado e conseguir um gelado no fim: não é uma perda de tempo."
In “How to Cure a Fanatic” – Amos Oz 2004
4 comentários:
Interessante. Gostei bastante do teu blog. Parabéns! Agora com certeza que virei mais vezes. Um abraço e obrigado pela visita ao meu espaço ;)
Nunca é uma perda de tempo!...
Aguçaste-me a curiosidade.
Olha, por falar em curiosidade, com que então, andaste aqui ao pé, a saracotear a pevide pelo centro da vizinha Matosinhos e népia. Nem uma abébia. Já estou mesmo a ver: "ora deixa-me cá misturar-me incógnito com os indígenas e apanhar um banho de maresia". Para acabar em beleza, só te faltou dar uma voltinha de sardinha assada. :)
Amos Oz é um enorme escritor israelita cuja escrita continua a permanecer "virgem" na minha mente, devo confessar.
Mas esta descrição deste "jogo" infantil e depois transportado para a vida adulta, pratico-o desde há muito e é extremamente interessante.
Abraço.
Ora essa, ImpossiblePrince, eu é que agradeço links e referências que me fizeram descobrir-te!
Sejas Bem-Vindo!
Que meio de transporte é a SardinhaAssada, Catatau? (Oz_tia do home, se é curioso: leiam O Meu Michael, aver);)
E sempre bom reavivar horas de espera e pôr os neurónios a funcionar livremente, Pinguim! Olha-nos aqui! Grande Abraço
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