09 agosto 2008

E_Terna Idade

"Temos até aqui, na sua ordem cronológica, o desenvolvimento deba­tido e curial da eternidade. Conceberam-na homens remotos, homens barbudos e mitrados, publicamente para confundir heresias e para reabi­litar a distinção das três pessoas numa, secretamente para deter de qual­quer modo o decorrer das horas. «Viver é perder tempo: nada podemos recuperar nem conservar senão sob a forma de eternidade», leio no espa­nhol emersonizado Jorge Santayana. Ao qual basta justapor aquela terrí­vel passagem de Lucrécio, sobre a falácia do coito: «Como o sequioso que no sonho queria beber, e esgota formas de água que não se sacia e morre abrasado pela sede no meio de um rio: assim Vénus engana os amantes com simulacros, e a visão de um corpo não lhes dá fartura, e na­da podem soltar ou guardar, embora as mãos indecisas e mútuas percor­ram todo o corpo. Por fim, quando nos corpos há presságio de venturas e Vénus está a ponto de semear os campos da mulher, os amantes aper­tam-se com ansiedade, dente amoroso contra dente; absolutamente em vão, dado que não chegam a perder-se no outro nem a ser um mesmo ser.» Os arquétipos e a eternidade — duas palavras — prometem posses­sões mais firmes. A verdade é que a sucessão é uma intolerável miséria e que os apetites magnânimos cobiçam todos os minutos do tempo e toda a variedade do espaço.
Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia. Pode-se pensar o mesmo do universo. Sem uma eternidade, sem um espelho delicado e secreto do que passou pelas almas, a história universal é tempo perdido, e nela a nossa história pessoal — que nos envaidece incomodamente. Não basta o disco gramo-fónico de Berliner ou o perspícuo cinematógrafo, meras imagens de ima­gens, ídolos de outros ídolos. A eternidade é uma invenção mais copiosa. É verdade que não é concebível, mas o humilde tempo sucessivo também não o é. Negar a eternidade, supor a vasta aniquilação dos anos carrega­dos de cidades, de rios e de júbilos, não é menos incrível do que imagi­nar o seu total salvamento."



Jorge Luís Borges - História da Eternidade 1936 - inspirado na frase escrita na pedra do Público de hoje:
"O dever de todas as coisas é ser uma felicidade".

4 comentários:

Socrates daSilva disse...

Que citações tão significativas que por aqui andam...
(Sabes que as ando a coleccionar? Espero que não te importes.)
:-)
Um Abraço!

João Roque disse...

Estou como o Sócrates; um pouco admirado, mas muito bem impressionado com estes teus últimos posts; o facto de não comentar o seu conteúdo, não significa que os não tivesse lido, antes pelo contrário; li-os mais que uma vez, mas sinceramente são tão densos que é difícil dizer algo; mais vale meditar sobre eles e acho que é isso que tu pretendes.
Abraço.

Paulo disse...

Vamos fazer o favor de cumprir o nosso dever.

João disse...

Desculpem o atraso (esta timidez e auto-desconfiança) mas tenholido tudo aqui, e têm sido muito importantes os vossos comentários!

à vontade, Sócrates, para isto mesmo partilhamos!
Pinguim, tu és o meu Rei aqui; sim, é para pensarmos um pouquinho nas questões que rodeiam a Vida!
Mas sem tormentos! Um grande abraço.

É isso, Paulo, ser para. E tu tens sido: mesmo. Naturalmente agradeço!