07 agosto 2008

O Fogo da Vida

(hoje sinto uma ligeira diferença de temperatura entre o exterior e todo o meu interior: é amanhã, é amanhã...)





“Quando os meus pais chegaram aos Estados Unidos, tinha eu apenas três anos, foram viver para um apartamento muito simples, pois era a única coisa que podiam pagar.
Não tinha electricidade, e apenas bicos de gás como iluminação. Tinha um fogão a lenha, e uma geleira em vez de um frigorífico.
O fogão era o meu prazer especial. A minha mãe acendia-o com jornais velhos e depois deitava-lhe paus e, no tempo frio, deixava a porta aberta durante algum tempo para ajudar a aquecer a cozinha. Eu observava entusiasmado, pois o fogo parecia vivo, consumindo o papel e depois apoderando-se da madeira e rastejando sobre ela, ficando azul e amarelo e libertando pela cozinha um odor delicioso, juntamente com o seu calor.
Anos mais tarde compreendi que o apartamento era um pardieiro horrível mas na altura não o sabia, claro, e quando nos mudámos dois anos depois chorei amargamente.
E o apartamento novo não me consolou. Não tinha bicos a gás, mas sim luzes eléctricas, que ardiam com um brilho morto e imutável para o qual não se conseguia olhar directamente (demorámos algum tmpo a descobrir as lâmpadas foscas). E o novo fogão a gás era uma desilusão terrível. Nunca mais voltei a ver chamas vivas num fogão, e não compreendia como é que um fogão a gás podia cozinhar. Nem sequer tinha tampas, que se podiam retirar com uma tenaz especial para olhar para o fogo no seu interior. É claro, na minha vida madura, já olhei de vez em quando para a lareira de outras pessoas, mas a magia nunca mais foi a mesma – para isso é preciso ser criança.
Uma vez que nunca estive num incêndio (nem quero estar, como compreenderão), nunca experimentei o horror e o perigo mortal do fogo. Lembro-me apenas do seu encanto e da sua beleza quando penso nesses velhos, velhos tempos. Hoje em dia, sabendo um pouco mais do que sabia quando era pequeno, penso na relação íntima do fogo com a vida – e particularmente do fogo com a vida humana – e é sobre isso que gostaria de falar agora.

[...]


É estranho pensar que o fogo só foi possível durante o último décimo da vida da Terra, mas os animais terrestres só existiram durante esse décimo final, portanto o fogo fez parte de toda a sua existência.
Não há maneira de dizer quando ou onde um fogo podia começar. Não sabemos quando um vulcão vai rebentar, ou qual será o próximo a fazê-lo. Mesmo que uma floresta esteja bem distante de qualquer vulcão, ainda pode estar sujeita ao golpe cego de um relâmpago. Assim que um fogo se acende, a vida vegetal, que é imóvel, não pode fazer outra coisa senão arder, e a vida animal que é demasiado lenta para fugir mais depressa que a velocidade de propagação do fogo também não pode fazer outra coisa senão arder. Contudo, os animais que conseguem fugir velozmente fazem-no, e não pode haver pânico maior do que o pânico de tentar correr à frente de um monstro mortífero e devorador cuja respiração ardente se sente atrás de nós.
É no que diz respeito ao fogo que a humanidade se distinguiu claramente de todas as outras formas de vida.
Há outros animais sem cauda; há outros animais que caminham sobre dois pés; há outros animais que conseguem comunicar de forma bastante subtil; há outros animais que usam ferramentas e até conseguem fabricá-las; há outros animais que conseguem, de certa forma, raciocinar ou criar. Em quase todos os aspectos, os seres huamnos diferem dos outros animais mais em grau do que em espécie.
Contudo, no que diz respeito ao fogo, a diferença é absoluta. Todas as sociedades humanas, sem excepção, utilizam o fogo. Nenhuma espécie de vida que não seja humana utiliza ou alguma vez utilizou o fogo.
Como é que isto aconteceu?
Não sabemos, claro. Apenas podemos especular.”



Isaac Asimov De Todo o Lado (capítulo décimo terceiro publicado originalmente em Agosto de 1988, agora recolhido neste livro, publicado em português pela Livros do Brasil – 2004)

5 comentários:

Anónimo disse...

E vê lá o preço que o pobre do Prometeu ainda hoje paga por nos ter revelado essa dádiva... Abraço! :)

João disse...

Agrilhoados, todos Nós! Outro, bem apertado:)

Paulo disse...

Amanhã desagrilhoas-te?

João disse...

Ou todo o seu contrário... ainda não sei...

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

''É claro, na minha vida madura, já olhei de vez em quando para a lareira de outras pessoas, mas a magia nunca mais foi a mesma – para isso é preciso ser criança.''

Oh não, não é...

Mas é preciso uma aprendizagem de desaprender!... um longo caminho de maturação, que termina onde tudo é mais mágico ainda muito mais mágico...

gostei do blog.
Até um dia