A viagem é sempre vista pela sabedoria épica como qualquer coisa de significativo: para o narrador, nunca se peregrina impunemente. Mas os estatutos do iniciado variam do triunfo mais irrefutável da força até ao acatamento não menos decidido da debilidade, da solidão ou do aniquilamento. A iniciação não tem lição unívoca; ao seu mais alto nível não lhe são alheias nem a sabedoria nem a ignorância. Todas essas perspectivas foram já minuciosamente recenseadas pelos críticos modernos. Eu gostaria de insistir aquinalguns aspectos da própria materialidade da viagem, numa das suas variantes possíveis: a descida.
Descer é abismarmo-nos no que nos sustenta, é desfundarmos o fundamento que nos subjaz. Perigosa missão, ou até mesmo enlouquecedora, pois tudo parece indicar que o solo nos sustenta precisamente na medida em que conserva a sua opacidade, o seu obstinado encerramento perante o nosso olhar indagador; abri-lo, de uma maneira ou de outra, é inutilizá-lo enquanto apoio: a pesquisa que o descobre aos nossos olhos, furta-o no mesmo lance aos nossos pés. Mas não só a nossa estabilidade física, também o nosso equilíbrio mental, a própria razão, podem chegar a vacilar neste empreendimento; descendo radicalmente – quer dizer, não ao descermos uma escada, que é qualquer coisa de elevado, mas ao descermos ao que realmente está por baixo – perdemos as nossas coordenadas mais estáveis e temos de inverter estranhamente os nossos pontos de referência. O que nos sustentava passa a ser o que nos cobre; o fechado rodeia-nos e dá-nos passagem, ao passo que o aberto adquire uma longínqua indeterminação opaca; os saltos aproximam-nos da pedra enquanto as quedas nos acercam do ar... A cabeça necessita de alicerces sólidos, não menos do que os pés, e este exercício de perversão geográfica pode transtorná-la. Todavia, em todos os tempos, o que está por baixo foi particularmente tentador: é aí que se encontram o reino dos mortos, mas também os tesouros; aí os segredos de todas as coisas, que nos permitirão controlá-las melhor quando voltarmos à superfície; aí o mais profundo, o mais fundo, que por intuição visual se nos afigura o mais estimável; aí jaz ainda tudo o que apodreceu, mas também o esquecido, o temido, o que deve ser escondido, quer dizer, ser enterrado; aí nos esperam as trevas mais opacas – mortos ou vivos acabaremos por a elas ir ter, descermos vivos previne-nos e prepara-nos para a descida definitiva -, tudo o que é negado à luz do dia; aí, por último, por baixo, deve estar o centro, pois naõ podemos esquecer que rastejamos sobre uma esfera – e esse centro não é tanto uma equidistância geométrica como um ponto de poder espiritual, o terrível umbigo divino, que açambarca o significado do mundo. Do inferior, do obscuro, do fechado, da terra saímos um dia; aí voltaremos uma destas noites. Desce-se para se surgir outra vez, de novo, quer dizer, para renascer; este segundo nascimento proporciona-nos forças renovadas, uma disposição vital impecável que o contacto com o inferno temperou, bem como uma familiaridade com o fundamental que faz com que o irremediável perca o seu horrível prestígio.
A infância recuperada – Fernando Savater 1976 (Ed. Ambar 2006- Pag 68-69 Tradução Miguel Serras Pereira)
Descer é abismarmo-nos no que nos sustenta, é desfundarmos o fundamento que nos subjaz. Perigosa missão, ou até mesmo enlouquecedora, pois tudo parece indicar que o solo nos sustenta precisamente na medida em que conserva a sua opacidade, o seu obstinado encerramento perante o nosso olhar indagador; abri-lo, de uma maneira ou de outra, é inutilizá-lo enquanto apoio: a pesquisa que o descobre aos nossos olhos, furta-o no mesmo lance aos nossos pés. Mas não só a nossa estabilidade física, também o nosso equilíbrio mental, a própria razão, podem chegar a vacilar neste empreendimento; descendo radicalmente – quer dizer, não ao descermos uma escada, que é qualquer coisa de elevado, mas ao descermos ao que realmente está por baixo – perdemos as nossas coordenadas mais estáveis e temos de inverter estranhamente os nossos pontos de referência. O que nos sustentava passa a ser o que nos cobre; o fechado rodeia-nos e dá-nos passagem, ao passo que o aberto adquire uma longínqua indeterminação opaca; os saltos aproximam-nos da pedra enquanto as quedas nos acercam do ar... A cabeça necessita de alicerces sólidos, não menos do que os pés, e este exercício de perversão geográfica pode transtorná-la. Todavia, em todos os tempos, o que está por baixo foi particularmente tentador: é aí que se encontram o reino dos mortos, mas também os tesouros; aí os segredos de todas as coisas, que nos permitirão controlá-las melhor quando voltarmos à superfície; aí o mais profundo, o mais fundo, que por intuição visual se nos afigura o mais estimável; aí jaz ainda tudo o que apodreceu, mas também o esquecido, o temido, o que deve ser escondido, quer dizer, ser enterrado; aí nos esperam as trevas mais opacas – mortos ou vivos acabaremos por a elas ir ter, descermos vivos previne-nos e prepara-nos para a descida definitiva -, tudo o que é negado à luz do dia; aí, por último, por baixo, deve estar o centro, pois naõ podemos esquecer que rastejamos sobre uma esfera – e esse centro não é tanto uma equidistância geométrica como um ponto de poder espiritual, o terrível umbigo divino, que açambarca o significado do mundo. Do inferior, do obscuro, do fechado, da terra saímos um dia; aí voltaremos uma destas noites. Desce-se para se surgir outra vez, de novo, quer dizer, para renascer; este segundo nascimento proporciona-nos forças renovadas, uma disposição vital impecável que o contacto com o inferno temperou, bem como uma familiaridade com o fundamental que faz com que o irremediável perca o seu horrível prestígio.
A infância recuperada – Fernando Savater 1976 (Ed. Ambar 2006- Pag 68-69 Tradução Miguel Serras Pereira)
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