09 abril 2011

Razor's_Edge III

E este é o último post desta série que aqui marca "a linha" enquanto assisto a isto! Depois explico... (procurem no you tube)


Não há dúvida sobre o facto de os planetas do nosso sistema solar e até mesmo os que giram em torno de estrelas inconcebivelmente longínquas serem habitados. Provam-nos os nossos fantasmas, os nossos projectos e os nossos temores; são governados por hipóstases insaciáveis dos tiranos terrícolas ou por reflexos monstruosamente aumentados das burocracias sem alma que sofremos, enquanto cientistas rigorosos e precisos até ao ponto mais impiedoso – quer dizer, mais científicos ainda do que os habituais – forjam máquinas de uma irrepreensibilidade obsessiva. Neles os insectos crescem até alcançarem proporções humanas e erguem-se nas patas traseiras, como há séculos sucede nos nossos pesadelos, enquanto a linguagem é abolida em benefício de uma comunicação telepática imediata, como insensatamente tantas vezes desejámos. É o humano em toda a parte, nos próprios confins do universo: não consentimos que seja o que for escape ao nosso jogo, ao nosso olhar, às nossas manias. A lepra da vida consciente estende o seu contágio de planeta em planeta, salta de sol em sol, pelo menos ao nível do alucinatório. Ao imaginar habitantes de outros mundos, dir-se-ia que o homem se resigna modestamente a perder a sua posição central de umbigo do cosmos. Nada disso: um assomo de supremo orgulho, que certifica definitivamente a sua radical incapacidade para a medida, ei-lo que conquista mentalmente as galáxias, reparte imagens de si próprio pelas estrelas, frenético por ainda não poder ainda ir lá maculá-las em pessoa. Cada aparente retrocesso de antropocentrismo é na realidade um reforço tornado mais subtil da pretensão à dominação do cosmos, pelo menos teórica, que constitui essencialmente esse vício inextirpável. Com efeito, o sistema de Galileu é mais antropocêntrico do que o de Ptolomeu, mas menos do que o de Newton ou Einstein. A Terra é demasiado pequena para satisfazer a cósmica vaidade humana, e descentraliza a inteligência em sistemas cada vez mais sofisticados, a fim de que todo o universo gravite em torno de um pensamento que ocupa não só o centro, mas também a periferia e cada parcela do que existe, embebendo das suas leis a última partícula de poeira estelar que flutua na porção de éter mais mínima. Pouco importa a forma extravagante que se imagine para os seres de outros planetas, são monstros que pensam e isso irmana-nos a eles, porque tão-pouco é de outro modo que o homem se define. Homens-centopeia, homens com tentáculos e ventosas, homens-água, homens-chama, homens-pirâmide ou homens-cilindro, é tudo a mesma coisa: homens, todos eles, em primeira e última instância, seres que refletem, que se distanciam indefectivelmente de si próprios e do que os rodeia, que odeiam ou ambicionam, que se compadecem , que se afligem, que se organizam e se revoltam contra a organização. O cenário da comédia humana cresce, complica-se e torna-se exótico; o guarda-roupa renova-se, o atrezzo sofistica-se; o argumento continua monotonamente imutável. O homem irrigou os astros com a sua inquietação e escuta depois com terror o infinito silêncio dos espaços: os invasores que o seu susto aguarda vêm devolver-lhe a visita impertinente que a sua fantasia fez ao perturbar a perpétua irrelevância do vazio. A nova progenitura que descerá dos céus, segundo cantou Virgílio, não nos traz outra novidade que não seja uma exarcebação das nossas tendências, uma acentuação até ao ridículo ou o atroz dos nossos usos. Queremos contaminar de reflexão todo o universo, alargar a anomalia da consciência às nebulosas mais remotas, exagerar noutros planetas as complicações que sofremos neste. Queremos salvar-nos, é claro, e já só podemos correr numa direcção: uma vez conhecido o espírito, já não podemos recuar, apagar o seu rasto, procurar refúgio no mineral; é preciso fugir para diante, dotar de inteligência todas as formas e todos os mundos, para, finalmente, fazer explodir o pensamento por cima e regressar ao paraíso da harmonia através de uma intensificação da diversidade, de uma sábia enfatização do conflito... Somos os extraterrestres, desde que conseguimos olhar a partir do exterior, de longe; o monstro que urde a nossa invasão de outro mundo é a esperança dessa diferença radical que o tédio do espírito não se resigna a abandonar. Já só do espaço intergaláctico podem chegar até nós os bárbaros cujo impulso invasor cumpra os nosso anseios mais secretos. Ou, melhor ainda: só noutros planetas ainda mais decadentes e perplexos do que o nosso poderíamos exercitar-nos enquanto bárbaros e aquecer o nosso sangue entorpecido com o saque de civilizações exaustas, por comparação com as quais a nossa própria espécie aborrecida se transformaria num ideal de vitalidade.

A infância recuperada – Fernando Savater 1976 (Ed. Ambar 2006- Pag 121/2/3 Tradução Miguel Serras Pereira)

1 comentário:

João Roque disse...

João
é com certeza interessante, mas não tenho actualmente disposição para coisas deste tipo, que me obrigariam a abstrair-me de muita coisa para "entrar" nelas, como deve ser.
Abraço.