08 maio 2009

Write_For

Tudo me pareceu simples: escrever é aumentar com uma pérola o colar das musas, legar à posteridade a lembrança de uma vida exemplar, defender o povo contra si próprio e contra os seus inimigos, atrair sobre os homens, mediante uma missa solene, a benção dos céus. Não me ocorreu a ideia que se pudesse escrever para ser lido.
Escreve-se para os vizinhos ou para deus. Tomei o partido de escrever para deus com o fito de salvar os meus vizinhos. Eu queria devedores de obrigações e não leitores. O desdém corrompia-me a generosidade. Já no tempo em que eu protegia as órfãs, começava por me livrar delas, mandando que se escondessem. Escritor, o meu estilo não mudou: antes de salvar a humanidade, começaria por lhe vendar os olh os; só então me voltaria contra os pequenos mercenários negros e velozes, contra as palavras. Quando a minha nova órfã ousasse destar a venda, eu estaria longe; salva por uma façanha solitária, ela não repararia a princípio, chamejando numa prateleira da biblioteca nacional, no volumezinho, novo em folha, que traria o meu nome.
Advogo as circunstâncias atenuantes. Existem três. Primeiro, através de um límpido fantasma, era o meu direito de viver que eu punha em questão. Nessa humanidade sem visto que espera o bel_prazer do artista, terão reconhecido por certo a criança empanturrada de felicidade que se entediava no poleiro; eu aceitava o mito odioso do santo que salva a populaça, porque afinal a populaça era eu: declarava-me salavador patenteado das multidões para efectuar discretamente, e ainda por cima (como dizem os jesuítas), a minha salvação.

As palavras, Jean-Paul Sartre 1964

1 comentário:

Paulo disse...

Olha quem está ali em cima! A condizer com o dia de hoje, que é de trovoada.