31 maio 2010

Sin_Fonetic

Excelentíssimo Senhor Director: para lhe transmitir a inaudita impressão que a sua sinfonia me deixou tenho de lhe falar não de músico para músico, mas sim de Homem para Homem. É que eu vi a sua alma, nua, despojada. Ela surgiu à minha frente como uma paisagem bravia, misteriosa, cheia de assustadores baixios e poços ao lado de alegres e límpidos prados ensolarados, idílicos locais de repouso. Eu vi-a como um fenómeno da Natureza, cheia de sobressaltos e desgraças, mas também com luminosos e tranquilizantes arco-íris. Senti uma luta com as ilusões; senti a dor de um desiludido. Vi o combate de forças boas e más, vi um homem cansado da extenuante luta por harmonia interior. Senti um Homem, um “drama”, “verdade”, “verdade” sem nenhuma concessão!
Arnold Schönberg - Carta a Gustav Mahler, (12 de Dezembro de 1904) depois de um ensaio da 3ª sinfonia.



Sufocados pelo silêncio,  continuamos em honestas descargas emocionais nos tempos em que deveríamos decidir o rumo a seguir - farto de terapias de grupo, de grupos, protegemo-nos dos desabafos, fazendo o melhor que podermos até à nossa ausência: a palestra da manhã, em torno das mesas do bar, é sobre a integração das gentes: batatas romenas evangélicas, a eletrónica de cá vinda do Brasil, a dialéctica angolana entre o mar e mar e antigos reinos bantos, a nacionalização cigana. Rapidamente ruralizamos o cosmos no campo de jogos onde passeamos por latadas carregadas de flores de kiwi em cacho, orquídeas suspensas, moranguinhos silvestres nos canteiros selvagens, jarros verdes e rosas, mil rosas* de pé, arbustivas a preencherem os pequenos jardins em volta das vivendas na sua pacatez, interrompida por carros que passam, camiões e ciclistas, um cortador de relva. Reorganizando uma vida, prevendo-a já sem capacidade de a gerar, chegamos ao átrio mágico que gira por cima dos nossos destinos: duplicando-a, surgem seis andamentos com coro e soprano pelo meio; depois janta-se (e novamente hoje) para, de atalho pelo metro andante, chegar à polícia dos mártires da pátria para buscá-las e de novo descer para *elas negras. Mais coincidências na frente varina, love calls: daí que as gémeas se despedem, subimos ao lusitano mediterrânico onde dançamos, furando o povo (e está alí todo o público moleiro, que entretanto encerrou) em zoom atento pelos becos escuros. Já bem conservado, sigo directo ao tabuleiro superior popular que percorro destemido, vislumbrando em altura vertical o leito escuro e as luzes infinitas que desenham as veredas, alcanço a mais alta e todo o horizonte cresce. Regresso depois dos chafarizes com relógios solares e lua perfeita pela vímara peres e viro para vistar na madrugada o largo da sé, as torres, arcos e pelouro, enquanto aguardo a composição que me levará de volta à feira das vaidades. Regresso à invicta pelos seus carreiros assentes como uma pér(g)ola, para me aquecer com um fino à beira do molhe a ver os pesqueiros...

Oh, homem! Presta atenção!
O que diz a profunda meia-noite?
"Eu dormia, eu dormia,
e despertei de um sonho profundo:
O mundo é profundo, 
e mais profundo do que o dia julga.
Profunda é a sua dor,
E a alegria... mais profunda que o sofrimento.
A dor diz: Passa!
Mas toda a alegria deseja a eternidade,
a profunda, profunda eternidade!"

Friedrich Nietzsche - Assim falava Zaratustra (tradução de Ofélia Ribeiro)
 - ambos excertos tal como estavam no programa do concerto.

26 maio 2010

Myco_Plasma

Será mais fácil lidar com a artificialidade da vida do que com a sua complexa “naturalidade” ou será uma a consequência da outra? Já temos as cidades, plenas de comidas rápidas e estradas em alargamento a grande velocidade, as erupções já não causam pânico e nem nos perdemos nas rotundas por mais próximo que estejamos da boca do inferno, a escassos oitavos do final; a cultura que acontece como cogumelos em todas as esquinas, manobra isolada das multidões entre a rua do norte e a praça das flores; os jacarandás já não têm o esplendor de outrora por mais que cresçam no meio das avenidas e transparecem a rotura dos raios solares; num lapso de tempo, corta-se a tapada e a atmosfera enche-se de nuvens luminosas carregadas pelos sons de duzentos e três anos de espera, de novo juntos e ao vivo, coros e trompas anunciam as glórias idas no alfa e ómega em fusão. Às portas do sol, sob a meia lua, relembramos os caminhos que fizémos desde então, aguardando a colheita...


(Tenho uma dor de alma ou dói-me o coração e espero que passe...nem que vá daqui até ao oriente e regresse, acalmar as realidades e as pre_ocupações.)

22 maio 2010

One

Muito hirta de pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó-de-arroz um pó de biblioteca
surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris em Liège em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar num museu numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa 

Da mãe para o mundo, para afirmar o ano, o dia, o espaço de tempo entre que nos conhecemos... e tudo o que contém_ve (ainda a legenda do mestre - inspirado na dina):

Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas

21 maio 2010

Velouria

E uma semana dos diabos assim me assombrou: das tarefas polidas mas ocas, aos almoços no costa (rosa_azulejo por fora, rosa por dentro, o que é?) com a colega - aproveitar as noites nas nossas varandas em petiscos ao luar; manhãs inúteis ou perdidas entre laúndos e navais, a bela igreja de barqueiros e a rua da praia da estela. Espiritualidades encontradas, abandono de raiva e mágoa, à torreira da tarde atravessar a praça para lacre prateado a fechar convites de casamento, ou à sombra do sobreiro do lado fetal, do outro dos problemas. Projectos angustiados no contexto maldito, interpretações notáveis no final da oficina de língua: nós, nostálgicos; nós, melancólicos; nós, tristes. Ao longo do cávado, em papel couché ou vergé, arrumamos o passado e encerramos o presente (a ver touros entre o campo pequeno e a azambuja). Prevenindo as medidas de austeridade, enganam-se as taxas e os prazos, largo a carteira e sigo para bingo.

Esta é para o Roque e o seu “amig@” de tão amigados que voltam a estar... Beijos aos dois. 
Esta é para Nós! A brincar e em slow motion, já passou um ano!

hold my head
we'll trampoline
finally through the roof
on to somewhere near
and far in time
velouria
her covering
travelling career
she can really move
oh velveteen!

my velouria, my velouria
even i'll adore you
my velouria

say to me
where have you been
finally through the roof
and how does lemur skin
reflect the sea?

we will wade in the shine of the ever
we will wade in the shine of the ever
we will wade in the tides of the summer
every summer
every summer
every
my velouria
my velouria

forevergreen
i know she's here
in California
i can see the tears
of shastasheen

my velouria, my velouria
even i'll adore your
my velouria

17 maio 2010

Diás_Polis

Planos refeitos para ajudar gémea a provar autoria de estudo surripiado para congresso em Coimbra. E almoço e dia juntos, logo se vê... Não há fuga possível, mesmo porque a oferta do dia da mãe continuou aberta e, depois de uns chás na avenida de frança, seguimos pelas veredas selvagens do vouga até ao rio sul – pausa para café no palácio do inatel em são pedro antecedido pelo cruzar das águas ao sol-pôr - entrada (e saída) por rotundas majestosas do autarca-rei. Aterragem perdida por trás do serrado, descemos as suas recentes escadinhas, carregamento com louco ao lado e creme tokalon, telefone com a amiga perdida e check-in no antigo hospital transformado em pousada, amarelo por dentro, branco por fora, forrado de design, ascendemos ao quarto piso para visitação dos aposentos: moderna clarabóia protege arcadas, azulejos, escadarias e procuramos o cortiço. Nada feito até às dez, descobrimos o trapalhão do claustro e pedimos um enquanto nos esgueiramos pela misericórdia para escutar um solfejão adiado mas ficamo-nos pelo discurso da museologia e harmonia social, porque está a arrefecer. Comemos rápido e entramos pela matriz secular de nós nos tectos e perfeita porta românica no pátio conquistado ao paleo_cristão; saltamos para o grão vasco pela cadeira do poder sem tempo, capas em continuum ondulante e dois pisos de arte sacra com um pé flamengo e outro quase expressionista (demasiados pentecostes). Ensaio em zum-zum de corrida para o pelourinho onde regressarei três vezes nessa noite: depois da descida ao retábulo onde o rapaz do piercing no colo nos serviu e conhecemos, fomos buscar o cão ramiro à sua torre e de novo no adro onde se diz subterrada uma passagen secreta entre freiras e monges, visitamos o bar do grupo do teatro duplo onde buscamos o dono, levamo-lo a casa em plena circular e esperamos no boquinhas com a sua taberna e sangria tradicionais; pela recusa, voltamos e sentados aí outra vez é o scott que nos chama para as amigas dos oitenta e grupo erasmus: descemos a cantar o malhão em italiano até ao mercado 2 de maio e dançamos no sótão feliz.
Acaba tarde, peco a carreira das dez e pelo forum chego ao pavia renovado pelas finanças europeias, trilhos do funicular, espelhos de água, cânticos na conceição – percorro a cava por cima da gruta, releio o público com outro café – love calls para fotografar a igreja abandonada e descobrir três bicas, a pedra a soar e o senhor da nossa aliança. Já longe deste refúgio, contornando o caramulo e a sobrevoar as lagoas altas, revejo o luso e o leito onde estávamos há um ano...

...como em uma onda que vinha crescendo, correram a engrossar esta corrente novas tribos movidas por um sentimento acordado pelo espírito que fortificava o braço de Viriato; - o ideal de uma Pátria, síntese da unidade da raça até ali desmembrada e de uma tradição esquecida ou quase perdida. Pela primeira vez a Lusitânia teve a consciência da sua unificação étnica ao aceitar o pacto federativo contra o Romano, proposto por Viriato como uma força defensiva. A coragem do chefe lusitano era tão grande como a confiança no futuro da Lusitânia livre. Em todas as guerras da Espanha nunca os Romanos encontraram um levantamento de povos assim vasto e unânime; era uma situação desesperada, que só por meios fora dos processos conhecidos poderia ser dominada.


in Viriato (1904) - Teófilo Braga (também em e-book)
Em homenagem ao momento de hoje e a estes dois homens viris que foram capazes de abraçar a causa - o primeiro a resistir ao império latino e o primeiro chefe do estado republicano - por contraponto a este incapaz que foi obrigado a promulgar. Como um grande hino, esta é a nossa bandeira:

14 maio 2010

Tris_Caide

Pois é, tenho uma porra de uma educação cristã, cheia de princípios e preconceitos morais que são levados com as marés de natureza instintiva e corpórea, com preias e baixas rés anímicas (assisto em directo ao roubo de flores nos aliados, à família do gana em entrevista, à partida do papa), com marés-vivas de racionalidade levantadas pelos construtos desta cultura.
Neste dia do substituto do traidor que o ajudou a ser pregado pelo tempo no nosso quotidiano, desisto novamente de espíritos missionários: que cada um pense e sinta o que quiser, que se orgulhe dos seus medos e que faça o seu caminho, inevitavelmente conjunto, inevitavelmente interrompido. Estamos aqui todos neste vórtice futurível e só quero uma violenta mescla das fés silenciosas no universo eterno...

(A_dEUS e que não volte!)

10 maio 2010

Labrys_Feast II



"As pessoas sentiram sempre uma admiração, onde se mistura o respeito e a inquietação, por esses homens estranhos que previam o futuro. Porque o futuro é essa região do tempo onde nós os homens na realidade vivemos. A vida, não esqueçamos, é um trabalho que se faz andando para a frente. O que nos importa e inquieta é o que pode passar-se no momento que está para vir, o imediato e o longínquo. O homem está a todo o instante projectado sobre esse vazio pavoroso que é o porvir. Ora bem, digo que o futuro, o porvir é uma coisa vazia diante de nós, porque é a dimensão problemática da nossa vida. Nunca sabemos o que nos vai trazer, o que nos vai acontecer. É o essencialmente inseguro. [...] Tem sido normal que a história seja prevista. A história humana, apesar da constante intervenção do acaso, é algo assim como uma melodia, e quem sabe receber em si com intensidade e pureza o troço que dela soou até uma determinada data, sente brotar dentro de si o resto da melodia que soa em direcção ao futuro. Para isso só é preciso ter absolutamente livres as raízes do seu ser; mas, como os povos que são grades em determinada actualidade estão demasiado prisioneiros do presente, demasiado ocupadoscom os negócios e conflitos do presente, é insólito que haja neles homens radicalmente abertos e suficientemente abertos a essas visões etéreas do porvir." 

A Rebelião das Massas 1930 - Ortega y Gasset

09 maio 2010

Labrys_Feast I



"A vida humana tem de estar, pela sua própria natureza, dedicada a alguma coisa, a um empreendimento glorioso ou humilde, a um destino ilustre ou trivial. Trata-se de uma condição estranha, mas inexorável, inscrita na nossa existência. Por um lado, viver é algo que cada qual faz por si e para si. Por outro lado, se essa vida minha, que só a mim me importa, não é entregue por mim a algo, caminhará desconjuntada, sem tensão e sem “forma”. Nestes anos temos assistido ao gigantesco espetáculo de inumeráveis vidas humanas que avançam perdidas no labirinto de si mesmas por não terem a que entregar-se. Todos os imperativos, todas as ordens ficaram em suspenso. Parece que a situação devia ser a ideal pois cada vida fica em liberdade para fazer o que lhe apetecer, para conceder férias a si mesma. Igualmente cada povo. A Europa afrouxou a sua pressão sobre o mundo. Mas o resultado foi contrário ao que era de esperar. Liberta de si mesma, cada vida fica sem si mesma, vazia, sem ter ocupação. E, como tem de encher-se com alguma coisa, “inventa” ou finge frivolamente ser ela mesma, dedica-se a falsas ocupações  que nada de íntimo, de sincero, impõe. Hoje é uma coisa; amanhã outra, oposta à primeira. Está perdida ao encontrar-se sozinha consigo. O egoísmo é labiríntico. Compreende-se. Viver é ir disparado em direcção a algo, é caminhar para uma meta. A meta não é o meu caminhar, não é a minha vida; é algo onde ponho esta, e que por isso mesmo está fora dela, mais além. Se me dedico a andar só dentro da minha vida, egoisticamente, não avanço, não vou a nenhuma parte; dou voltas e mais voltas num mesmo lugar. O labirinto é isto, um caminho que não conduz a nada, que se perde em si mesmo, de tanto não ser mais do que caminhar dentro de si."

A Rebelião das Massas 1930 - Ortega y Gasset

06 maio 2010

Con_Fashion

Digo-o: A Igreja é Contra_Natura! Já assinei a petição e quero ver a confusão.

P.S.- Após o episódio de hoje do fringe, meia maçã verde e uma túlipa branca, a minha crença aumenta...agora que todos podemos ser Santos!

01 maio 2010

Both_Sides

A sala onde me enclausuro até é agradável ao final da tarde pós_molhada, com a luz forte que a enche, recortada pelas grades. Silencia-se a semana e as decisões gravitam sem forças de atracção. Salva-se a técnica apurada mas descuidada nos tempos, o bunker de rolos de pêlos para corridas de sono em que se transformou a casa de ramos secos, o desgaste do papel biográfico individual - a feira rápida antes do rally da falperra para o colega desolado com a mãe conselheira que me arrastou até penedones para me castelar em monte_alegre onde convergem em subducção; romance(s) de genji, agenda guevara e o de abaixo antes de verificar porque não quero ali ficar. O amor vai para o algarve. Parabéns à mãe.
E hoje, em conta_quilómetros de linha férrea, prendo-me na catenária para descarregar a tensão: mocas lindas, livres, ressurgir pelos amigos encontrados na bruma das robíneas e dos vulcões que co_insistem, agregam e expiram. Quero homenagear o jantar à noite, voltar a ter o sorriso da criança grande e o chá de amanhã em frente ao mar...



"À porta de uma pequena construção, o director despediu-se: «Deixo-o agora, senhor Meursault. Estou às suas ordens, no escritório. Em princípio, o enterro está marcado para as dez horas da manhã. Pensámos que o senhor podia assim passar a noite a velar. Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes, aos amigos, o desejo de ter um enterro religioso. Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.» Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião. Entrei. Era uma sala muito clara, caiada e coberta por uma vidraça. Mobilavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de XX. Dois deles, ao meio da sala, suportavam o caixão coberto. Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por trás de mim. Devia ter corrido. Gaguejou: «Fecharam-no, mas eu vou desaparafusá-lo, para que o senhor a possa ver.» Aproximava-se do caixão, quando eu o detive. Disse-me: «Não quer?» Respondi: «Não.» Calou-se e eu estava embraçado, porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: «Porquê?», mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: «Não sei.» Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou, sem olhar para mim: «Compreendo.» O homem tinha uns bonitos olhos azuis-claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta."

Albert Camus in O Estrangeiro pela Livros do Brasil, Pag.31