20 junho 2010

Cor_Colher

Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.
Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.
Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.
Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.
Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.
Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto. 

Science_Fiction I: Saramago (In Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição) Dois dias depois da sua ida, talvez a raiva de um falcão, pelo direito à dissidência e à heresia.

18 junho 2010

Star



«Quando se deixaram, Querelle amava Gil...
Querelle devotava à sua estrela uma confiança absoluta. Essa estrela devia a sua existência à confiança que nela tinha o marinheiro – ela era, se quiserdes, o esmagamento na sua noite do raio da sua confiança precisamente na sua confiança, e, para que a estrela conservasse a sua grandiosidade e o seu brilho, isto é, a sua eficácia, Querelle teria de conservar a sua confiança nela – que era a confiança em si mesmo – e, principalmente, o seu sorriso, a fim de que nem a mais subtil nuvem se interpusesse entre a estrela e ele, a fim de que o raio não perdesse energia, a fim de que nem a dúvida mais ténue embaciasse um pouco a estrela. Permanecia suspenso dela, dele nascida em cada segundo. Mas ela protegia-o efectivamente. O receio de a ver embaciada gerava nele uma espécie de vertigem. Querelle vivia a toda a velocidade. A sua atenção tensa, para alimentar a todo o momento a estrela, obrigava-o a uma precisão de movimentos que uma vida branda não teria obtido dele (e para quê, nesse caso?). Sempre alerta, via melhor o obstáculo e o gesto ousado que devia fazer para o evitar. Só fraquejaria quando estivesse esgotado (se isso alguma vez acontecesse). A sua certeza de possuir uma estrela provinha de um entrelaçado de circunstâncias (que chamamos uma felicidade) tão ocasional, ainda que organizado, e de tal modo – pois que em rosáceas –que nos sentimos tentados a procurar nele uma razão metafísica. Muito antes de pertencer às tripulações da esquadra, ouvira Querelle a canção intitulada A Estrela do Amor:
Todos os marinheiros têm uma estrela
Que no céu os protege e lhes acode
Quando aos seus olhos nada a vela
O infortúnio contra eles nada pode.»

Jean GenetQuerelle de Brest (1953) Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues, pelas Publ. Europa-América. Pág.159/60
Emprestado do Amor

16 junho 2010

Pro_Geria

Estamos em plena mutação...dissolve-se tudo numa triste, bela e pre_coce civilização.

15 junho 2010

Left(Right)_(Left)Right

Leiam a crónica do MVA no jugular de hoje: já matámos o sonho europeu mas estamos a caminho da ditadura mundial?

Não fiquemos lá dentro, a vida está cá_fora. Chega de fronteiras absurdas e nacionalismos mesquinhos! Encolhem as margens do tempo, a economia e a ecologia são uma só - esta casa - e precisamos de Querer o Universo... Mas vai ser difícil estarmos aqui  todos_juntos! A ver, nas cenas dos próximos capítulos...

Contra_Mundum

Foram três dias a dormir profundamente como não há décadas, a visitar as crias de um mundo porvir, percorrer o passado a_venturoso, limpar o pó mecânico e eléctrico das garagens e seus despojos, na angústia incessante das horas mortas, a repetir séries em série... E voltar à vida por apenas alguns momentos, só para te sentir cá dentro, depois da emersão por vias congestionadas sob a luz da íris espectral no reducto do dia, contra os faróis no retrovisor que por ti passam, fulminantes. Sem ainda o Zenão, leio a introdução da opous nigrum, após semana de documentários sobre a especialidade, originalidade e portugalidade literária que culmina com a fuga de Margot após o massacre, qual Judith arrependida.
E parto. Hoje não preciso de estar, de ver, de ser. Sou nada, ninguém e passo, resolvo os assuntos laborais com palavras à distância, morro e renasço a cada dia - como um capitão de um mundo pop - declaro-me por palavras e sorrisos e exaspero os semelhantes na medida em que me a_guardo expectante (pela terceira série do macabro justiceiro...)


Num regresso histórico, aqui (tal como nas festas dos antigamentes) e à continuacion...

09 junho 2010

Al_Arif

«Trazo la última palabra en la última página y ya se divisa la costa africana.
Blancos minaretes de Gamarth, nobles ruinas de Cartago, a su sombra me espera el olvido, hacia ellos deriva mi vida tras tantos naufragios. El saco de Roma tras el castigo de El Cairo, el fuego de Tombuctú tras la caida de Granada: ¿me atrae la desgracia o la atraigo yo a ella?
Una vez más, hijo mio, me lleva este mar, testigo de mis erráticos pasos y que, ahora, te conduce hacia tu primer exilio. En Roma eras "el hijo del Africano"; en África, serás "el hijo del Rumí". Estés donde estés, querran hurgar en tu piel y en tus plegarias.¡Guárdate de halagar sus instintos, hijo mio, y guárdate de doblegarte a la muchedumbre! Musulmán, judío o cristiano, que te tomen como eres o que prescindan de ti. Cuando la mente de los hombre te parezca estrecha, piensa que la tierra de Dios es ancha y anchos Sus manos y Su corazón. No vaciles nunca en alejarte allende todos los mares, allende todas las fronteras,  todas las patrias, todas las creencias.
En cuanto a mí, he llegado al final de mi periplo. Cuarenta años de aventuras me han vuelto torpes el paso y el aliento. No tengo ya más deseo que vivir, entre los mios, luengos días apacibles y ser, de entre todos los que amo, el primero en marchar. Hacia esse Lugar postrero donde nadie es extraño ante los ojos del Creador

[Final] de León, el Africano (1986) - Amin Maalouf  que hoje ganhou o prémio Príncipe das Astúrias.

08 junho 2010

Com_Pliments

I'm fixing a drink in the morning
With a wavy tongue
You may have stayed too long

You're splitting apart at the seams
From the hospital call
You've known him so long

If there's a God up in the air
Someone looking over everyone
At least you got something to fall back on

Deep in the heart of the country
Was a house I built from logs
A raven and a lady hawk

Quiet and calm through the day
See the sun burn through the fog
Approaching was a yellow dog

If there's a God up in the air
Someone looking over everyone
At least you got something to fall back on

And what are people really for?
Does any body even care?
I'll bet you get a lot of compliments down there

If there's a God up in the air
Someone looking over everyone
At least you got something to fall back on

And do you got something to say?
Isn't something coming over you?
Do you got important things still left to do?

From the last album of Band of Horses - Infinite Arms

06 junho 2010

Hiper_Dulia

A pé, em peregrinação pelo dia da senhora, acompanhado pela mensageira após seia plena de filosofia, investigamos os mistérios do caminho da mãe das mães - todas e mais algumas - atravessando todo o souto até ao centro, são vítor e dom pedro em permanente diálogo até ao velho e saímos da cidade pela nova cruz, num brando calvário.
Após pausa estimulante para hóstia e necessidades fisiológicas, chegamos aos barcos para caminhada de saúde em desmaio pela beleza natural do parque; pelas curvas em espinho seguimos, por entre a piquenicagem pós_descida e pela monumental escadaria até ao aterro nas alturas, percorremos a azulejaria da cripta com os dogmas e feitorias como ícones de uma história que mistura estado e religião nas suas entranhas. É na ascenção que decido o meu anátema, circundando o altar da virgem e, com a mártir, subir as centenas de degraus até atingir a vista do zimbório.
Após décadas de atraso -e nem o marianismo patriarcal conseguiu redimir- quer o jornalista da época, quer o sacerdote actual confessam o sucedido no primeiro santuário por afluência. Assim, assumo a minha essência, enquanto assisto à fé e atropelamento africanos do mundial, à marcha contra o genocídio da fome, ao pântano negro que penetra na américa, à efevercência belicosa na costa fenícia... (Ah, e o marcelo em paris com o arco do triunfo ao fundo, após conferência "agradável" na casa de portugal, a responder a perguntas dos espectadores, a assistir ao comentário de mourinho sobre o seu "modesto" comentário e a fazer apostas com o apresentador).

O talho de baixo do prédio tem agora um letreiro azul com um dente gigante e dois casais de jovens "curtem" sofregamente em frente à porta.

05 junho 2010

Streu_Nen

Pela 306 ondulo entre muros pelos novos e vastos campos de milho que se estendem até aos pinhais dos cerros e, passando por Macieira, saio numa recente rotunda; circulo por toda a vila? aldeia? e depois dos carris extintos, paro perto da velha e pequena estação; aqui encontro-me com a igreja de Rates, o mais perfeito exemplo do Românico em Portugal: os capitéis em várias e bem conservadas animalidades em relevo, cobertas nas arcadas pela verdugem húmida enquanto turistas peregrinos descansam na calma fresca sombra do interior, o quadriculado polido da renda que debrua as voltas por dentro e fora das capelas, um agnus dei que deslumbra o óculo da porta direita e pares de anjos que ladeiam o tríptíco do tímpano da entrada matriz. E uma esteira de areia com restos de pétalas ainda é visível até ao senhor da praça...
Depois perco-me pelas curvas da mata, surpreendo-me com a vista do mar por toda a costa da póvoa e desco até ao terroso; faço a estrada habitual e desta vez aproximo-me um pouco mais da Aguçadoura, pelas estufas resplandescentes e atrás do campo de golfe, com um lanche e livros. As horas passam na torreira do sol vendo a força do oceano num longínquo burburinho aquático e as gaivotas que planam sobre a linha das dunas no sentido ártico até que, sem tabaco, tenho que ir até ao povo; veêm-se jovens, deformações físicas, carroças e também varrem do asfalto restos de relva em tapete com escovas e pás; bebo um fino enquanto fico a escaldar na esplanada sentado a ver as belas plantas e a péssima arquitectura (a torre pequena e o pico da Boa Viagem são boas mostras). Volto à areia logo em frente e termino camus, dou o último mergulho para, já no caminho, decidir a próxima paragem...
Trouxe roupa lavada e gel de banho para o plano nocturno e é ao acaso que viro em Cepães, em plena rede natura atlântica. A sorte de um pedido faz com que o senhor do café à saída do passadiço viole com um alicate a ligação da água para que possa duchar-me; regresso pelo atalho em redor do cávado notando as magnólias em flor e entro na velha e bacelar cidade, estaciono no parque ao pé do hospital, ponho o barrete, pedem-me moedas e o significado (explico que sempre houve judeus em Portugal). Cirandeio pelas ruas vazias enquanto espero, pois já estava sub_escuta o artista do entretenimento deprimido com a(o) sua(eu) F(ado_B)ossa Nova. Rio pouco, aplaudo muito e saio directo contornando três pirâmides arbustivas até chegar ao prado...


Inspirado na vendeta que acaba de passar no primeiro.

04 junho 2010

Troi_A/Cressid_lo

A lenda de Tróia foi uma das mais populares de todos os contos clássicos que circularam na Inglaterra isabelina; matéria de Homero e Virgílio. Muitos ancestralistas consideravam até Londres a Nova Tróia «Troy_Novaunt», fundada pela linhagem dos refugiados da cidade derrotada. Contudo, em T&C Shakespeare aposta em subverter deliberadamente a lenda. É uma peça em que as crenças ortodoxas na coragem troian e na bravura grega são invertidas, revelando uma realidade dura, brutal e hipócrita subjacente às acções de ambos os lados. Os únicos valores são os que o tempo e a moda vendem: vender é aqui a palavra justa.

Peter Ackroyd in “Shakespeare-A Biografia”; tradução de Telma Costa pela Teorema, 2008; pp 375.
Neste mundo não há lugar para o amor. Ele está envenenado desde o princípio. A estes amantes de guerra foi concedida apenas uma noite. E estragaram-lhes essa única noite. Privaram-na de qualquer poesia. Macularam-na. Créssida não dava pela guerra, mas a guerra surpreende-a ao amanhecer, depois da primeira noite com Troilo. [...] Há nesta tragicomédia dois grandes papéis de bobo: o adocicado Pândaro, em Tróia, e o amargo Térsito, no campo dos gregos. Só o amargo bobo Térsito está isento de toda a ilusão.
Nas tragédias, os heróis morrem, mas a ordem ética é salva. A sua morte confirma a existência do absoluto. Nesta peça surpreendente, Troilo não morre, nem mata a infiel Créssida. Não há catarse. Mesmo a morte de Heitor não é totalmente trágica. O grotesco é mais cruel do que a tragédia. Térsito tem razão.

Jan Kott in “Shakespeare, nosso contemporâneo” (1961); tradução de António Pescada para o Boletim Informativo do Teatro Municipal de Almada.
Escrita logo a seguir a Hamlet, T&C aprofunda o lado negro da sociedade e é considerada hoje uma obra-prima. Mas atenção: T&C não é um divertimento. É uma comédia. Uma das «problem plays» juntamente com Medida por Medida e Bem está o que Bem Acaba. É uma «black comedy» que faz certamente rir mas revela o que de mais cínico e sarcástico existe na natureza humana.

Mário Barradas (Linhas dramatúrgicas a desenvolver na encenação para o mesmo teatro - Notas inéditas a 19/11/2009)

Ontem e Amanhã, entre o cumprimento dos vizinhos e da médica que me acolheu. (Bolas, já não cheguei a tempo de colocar o lixo...)

03 junho 2010

Epi_Clese

Apenas mais um feriado... E estamos demasiado presos aos filmes e mensagens em streaming - para qualquer demanda socorremo-nos de rede e vegetamos em frente à pantalha.
Da oitava série do 24 e de uma lady windemere interpretada por scarlett johannson e helen hunt - loiras, lindas na belle epoque italiana com iates e jactos à mistura - ao sobrenatural do scripter que escreve a série e tem os personagens a assombrarem-lhe o futuro (que o nicholas cage consegue prever, com a julianne moore a persegui-lo); e nem a filha do presidente, anacondas, o indiana jones ou master_chief da cozinha vão conseguir evitar que cumpram o seu destino - memórias de uma boa refeição espiritual.
Mesmo com o círculo de boatos que se levantou contra qualquer possibilidade de consagração (até um festival de cinema na sua cidade), largada de touros, danças, cucas, tapetes de flores e procissões, a tradição desta festa religiosa - que foi tão grande noutros tempos e ajudou a disseminar a fé por tantos lugares misturando crenças e culturas - não morrerá na imagem ou palavra - Corpus Christi - no fundo do mar (coberta por crude)...
O que seria do espírito sem a matéria para se realizar?

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne...

"O poema" de Herberto Helder, no livro A Colher na Boca (1961). Retirado daqui.

01 junho 2010

Child's_Trip

«- Esteve no Haiti?
- Sim.
- E que tal as árvores de lá?
- As árvores?
- Sim, as árvores de copa, como as que há nas bermas das estradas ou...
- Ah, bom – palmeiras quase só. E as montanhas estão cobertas dumas que eles chamam “flamboyants”. E árvores de seda. Já não sei se as “flamboyants” eram parecidas com as de seda ou não. Seja como for, quando estão em flor, parece fogo. E quando o céu fica negro como breu antes duma tempestade de fim de tarde, ganham umas cores fantásticas. Nunca vi árvores como aquelas em mais sítio nenhum.
Ryuji queria falar da sua misteriosa fixação em relação a um bosque de palmeiras. Mas não sabia como contar uma história destas a uma criança e, no momento em que se sentou para pensar melhor, o clarão apocalíptico do pôr-do-sol no Golfo Pérsico irrompeu na sua mente, juntamente com o vento do mar que lhe acariciava o queixo quando estava de pé junto ao turco da âncora e a descida brusca do barómetro prenunciava um ciclone que se aproximava: voltava a ser dominado pelo pavoroso poder do mar que lhe trabalhava incansavelmente os seus estados de espírito e as suas paixões.
Noboru, como se um minuto antes tivesse visto as vagas de uma tempestade, contemplava nos olhos do marinheiro um a um os fantasmas que este convocava. Envolto em visões de países distantes e no ressoar do calão náutico, estava a ser varrido até ao Golfo do México, até ao Oceano Índico, até ao Golfo Pérsico. E a viagem era possível graças a este autêntico Segundo Imediato. Aqui, finalmente, estava o médium sem o qual a sua imaginação nada podia. Quanto tempo tinha esperado!
Em êxtase, cerrava os olhos com força.»

Yukio MishimaO marinheiro que perdeu as graças do mar” 1963 pela Assírio e Alvim – Coleccção O Imaginário nº5 | Trad.: Carlos Leite | Pag. 69/70 | 3ª Ed. em Setembro de 2008 | Também feita a adaptação cinematográfica para as costas da Inglaterra com o Sir Kris Kristofferson em 1976 - Trailer e música do próprio "Seadream"