Apenas mais um feriado... E estamos demasiado presos aos filmes e mensagens em streaming - para qualquer demanda socorremo-nos de rede e vegetamos em frente à pantalha.
Da oitava série do 24 e de uma
lady windemere interpretada por scarlett johannson e helen hunt - loiras, lindas na belle epoque italiana com iates e jactos à mistura - ao sobrenatural do
scripter que escreve a série e tem os personagens a assombrarem-lhe o futuro (que o nicholas cage consegue
prever, com a julianne moore a persegui-lo); e nem a filha do presidente, anacondas, o indiana jones ou master_chief da cozinha vão conseguir evitar que cumpram o seu destino - memórias de uma boa refeição
espiritual.
Mesmo com o
círculo de boatos que se
levantou contra qualquer possibilidade de consagração (até um
festival de cinema na sua cidade),
largada de touros, danças,
cucas, tapetes de flores e procissões, a
tradição desta
festa religiosa - que foi tão grande noutros tempos e ajudou a disseminar a fé por tantos lugares misturando
crenças e
culturas - não morrerá na imagem ou palavra -
Corpus Christi - no
fundo do mar (coberta por crude)...
O que seria do espírito sem a matéria para se realizar?
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne...
"O poema" de
Herberto Helder,
no livro A Colher na Boca (1961). Retirado daqui.