21 fevereiro 2011

Zeit_Geist

Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!
Então começa assim: a soturna rotina estabelece-se e pré-determina os limites da pausa seguinte; já nada o demove de se arrestar pela sua jaula que o pára nos momentos precisos em que o satélite estático prende o firmamento cheio de porções de água a sobrevoar a cidade-mãe. Adotado o novo instinto, nem a sua verdadeira família o tira dali, naquela que é a última pausa antes da integração voraz da cria partilhada; e vai pela cálida manhã à espera que o tempo lhe traga as novas da outra margem. Muda a letra, o fundo musical e regressa ao palco actuando para uma pequena plateia cheia de laca e de peles – afina a voz e trina:

Depois aguarda que o vento acalme pela madrugada e na primeira luz, lê as frescas divinas, liberta-se da penugem a mais e encontra os restícios da noite que a mala não carregou. Faz o caminho de volta até ao alto corgo onde os cumes em linha cintilam pelo que resta do sólido frio e subitamente as abismais cataratas de pedra e vinha catapultam-no para o seu íntimo nesta naçoum. Penetrando no coração bem medido do rio, pisa os morteiros costumeiros do dia e admira o serpenteio sob os arcos em sopé aquático assomando os álamos em frente ao cais; da quinta altaneira, no contraste bordeaux, o rebelo parado contempla os garnizés que ecoam em espelho e precedem a hipergrafia cromática num leve sopro com chuva de modernidade. Refeições consoladas de néctar humano espreitado nas caves alienadas em todo o processo de fabrico – a raiz colcheia como um fungo árduo, enxertada no seu velho içar; depois do rebatar dos bombos, é lançada a rede e enrolada pelos carris, chegamos a uma mesa farta de humidade e secura q.b. para alcançar o leito primário:

O que é bonito neste mundo, e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
e que a doçura
que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem' (1944)

1 comentário:

João Roque disse...

Talvez o mais português de todos os escritores da língua portuguesa.