Excelentíssimo Senhor Director: para lhe transmitir a inaudita impressão que a sua sinfonia me deixou tenho de lhe falar não de músico para músico, mas sim de Homem para Homem. É que eu vi a sua alma, nua, despojada. Ela surgiu à minha frente como uma paisagem bravia, misteriosa, cheia de assustadores baixios e poços ao lado de alegres e límpidos prados ensolarados, idílicos locais de repouso. Eu vi-a como um fenómeno da Natureza, cheia de sobressaltos e desgraças, mas também com luminosos e tranquilizantes arco-íris. Senti uma luta com as ilusões; senti a dor de um desiludido. Vi o combate de forças boas e más, vi um homem cansado da extenuante luta por harmonia interior. Senti um Homem, um “drama”, “verdade”, “verdade” sem nenhuma concessão!
Arnold Schönberg - Carta a Gustav Mahler, (12 de Dezembro de 1904) depois de um ensaio da 3ª sinfonia.
Sufocados pelo silêncio, continuamos em honestas descargas emocionais nos tempos em que deveríamos decidir o rumo a seguir - farto de terapias de grupo, de grupos, protegemo-nos dos desabafos, fazendo o melhor que podermos até à nossa ausência: a palestra da manhã, em torno das mesas do bar, é sobre a integração das gentes: batatas romenas evangélicas, a eletrónica de cá vinda do Brasil, a dialéctica angolana entre o mar e mar e antigos reinos bantos, a nacionalização cigana. Rapidamente ruralizamos o cosmos no campo de jogos onde passeamos por latadas carregadas de flores de kiwi em cacho, orquídeas suspensas, moranguinhos silvestres nos canteiros selvagens, jarros verdes e rosas, mil rosas* de pé, arbustivas a preencherem os pequenos jardins em volta das vivendas na sua pacatez, interrompida por carros que passam, camiões e ciclistas, um cortador de relva. Reorganizando uma vida, prevendo-a já sem capacidade de a gerar, chegamos ao átrio mágico que gira por cima dos nossos destinos: duplicando-a, surgem seis andamentos com coro e soprano pelo meio; depois janta-se (e novamente hoje) para, de atalho pelo metro andante, chegar à polícia dos mártires da pátria para buscá-las e de novo descer para *elas negras. Mais coincidências na frente varina, love calls: daí que as gémeas se despedem, subimos ao lusitano mediterrânico onde dançamos, furando o povo (e está alí todo o público moleiro, que entretanto encerrou) em zoom atento pelos becos escuros. Já bem conservado, sigo directo ao tabuleiro superior popular que percorro destemido, vislumbrando em altura vertical o leito escuro e as luzes infinitas que desenham as veredas, alcanço a mais alta e todo o horizonte cresce. Regresso depois dos chafarizes com relógios solares e lua perfeita pela vímara peres e viro para vistar na madrugada o largo da sé, as torres, arcos e pelouro, enquanto aguardo a composição que me levará de volta à feira das vaidades. Regresso à invicta pelos seus carreiros assentes como uma pér(g)ola, para me aquecer com um fino à beira do molhe a ver os pesqueiros...
Oh, homem! Presta atenção!
O que diz a profunda meia-noite?
"Eu dormia, eu dormia,
e despertei de um sonho profundo:
O mundo é profundo,
e mais profundo do que o dia julga.
Profunda é a sua dor,
E a alegria... mais profunda que o sofrimento.
A dor diz: Passa!
Mas toda a alegria deseja a eternidade,
a profunda, profunda eternidade!"
Friedrich Nietzsche - Assim falava Zaratustra (tradução de Ofélia Ribeiro)
- ambos excertos tal como estavam no programa do concerto.