08 abril 2011

Razor's_Edge II

Por um momento, suspendemos a hipocrisia saudável que nos certifica como sensatos e empreendedores cidadãos de estados baseados no progresso da ciência e voltamos a ver-nos como realmente somos: habitantes do improvável, vizinhos do nada, protagonistas de um pesadelo de tal desolação e desamparo que o único meio de conservarmos o tino é tentarmos esquecer, na medida do possível, a nossa mísera condição. Os defuntos que tínhamos apartado radicalmente da nossa vista antes de começarem a infundir-nos pavor saem da sua tumba e mostram-nos a sua repugnante putrefacção animada, recusando-se a esse tranquilo desaparecimento que com assustada solicitude para eles decretamos; voltam “conscientes do verme que os rói”, como anunciou Blake. Perante este retrato sinistro do espectral, as mentes sãs, os fígados correctamente operacionais, a boa gente na qual a marcha do mundo se apoia, recuam em direcção ao bom senso, ansiosos de ar puro, sol e borboletas. Mas exceptuam-se certas criaturas delirantes, viciosamente atentas aos seus próprios arrepios, que depois de terem conhecido a chicotada do pavoroso já não sabem passar sem ele (...)

(...) O “mau gosto” afronta o bom: a facilidade de encobrimento dos estragos da morte que define a civilização nela baseada. O invisível reclama, declara e faz pagar a sua ocultação acentuando com um colorido berrante os seus traços mais alarmantes. A morte perde a sua distância e aparece tal como realmente é: dona e senhora , centro do mundo, negro aroma da existência toda, referência obrigatória de cada gesto, de cada olhar. Mas esse desvelamento trabalha contra ela, o aparecer sem mantos dilacera-a. Dos seus faustos e estereótipos, surge uma nova esperança de vida, um vigoroso furor que se agita e levanta o morto, extraindo outra vitalidade mais duradoura do que deveria ter sido extinção perpétua. Os cemitérios enchem-se de animação nocturna, as ruínas vêem-se de novo povoadas por habitantes desconsolados, nos bosques e nos pântanos mefíticos crescem novas espécies inimagináveis. Ainda que, finalmente, a morte consiga impor o seu equilíbrio e o pó torne ao pó, o império do mais necessário viu-se por um momento comprometido poe uma excepção intolerável: insinua-se a suspeita de que uma vontade indomável pode armadilhar a morte, procurando as suas armas no lodo da própria corrupção.
Mais ainda: a comprovação do horroroso é já subversiva no âmbito da normalidade garantida pela resignação ao deplorável, pelo menos ao nível das aparências. O próprio tom da narrativa arrepiante encerra um propósito da refutação da morte, em lugar de exprimir um comprazimento mórbido no seu triunfo, conforme por vezes crê o observador superficial. É a indiferença, por fingida que seja e disfarçada que esteja de “maturidade”, que passa a certidão de óbito, e não o clamor do medo. Habituarmo-nos a um mal é colaborarmos com ele, por muitas razões científicas que se apresentem da necessidade de acatamento.

A infância recuperada – Fernando Savater 1976 (Ed. Ambar 2006- Pag 180/85-86 Tradução Miguel Serras Pereira)

Sem comentários: