18 setembro 2008

Naïve

“Chamaram outro médico; este, em vez de auxiliar a natureza e de a deixar obrar por si naquela moçaem que todos os órgãos clamavam por vida, não pensou senão em fazer o contrário do que o confrade fizera. Em dois dias, a doença tornou-se mortal. O cérebro, que se julga ser a sede do entendimento, foi tão violentamente atacado como o coração, o qual é, dizem, a sede das paixões.
Que mecânica incompreensível submeteu os órgãos ao sentimento e ao pensamento? Como é que uma simples ideia dolorosa é capaz de perturbar a circulação do sangue? E como é que o sangue, por sua vez, conduz a todas estas perturbações ao entendimento humano? Que fluido desconhecido é esse, cuja existência é certa, que mais rápido, mais activo do que a luz voa em menos tempo do que um pestanejar de olhos por todos os canais da vida, produz as sensações, a memória, a tristeza ou a alegria, a razão ou a vertigem, lembra com horror o que se quer esquecer e tanto faz de um animal pensante um objecto de admiração como um motivo de piedade e de lágrimas?
[...]
Quando o momento fatal chegou, todos os presentes soltaram lágrimas e gritos. O Ingénuo perdeu os sentidos. As almas fortes quando são sensíveis têm sentimentos bem mais impetuosos do que as outras pessoas. O velho Gordon conhecia-o suficientemente para recear que, quando ele voltasse a si, atentasse contra a própria vida. Esconderam todas as armas; o desventurado mancebo apercebeu-se disso; aos seus parentes e a Gordon, sem chorar, sem gemer, sem se comover, perguntou:
- Estais certo de que possa haver na Terra alguém com direito de me impedir de acabar comigo?
Gordon teve o cuidado para não fazer estendal desses lugares-comuns tão fastidiosos com que se costuma querer demonstrar que ninguém tem o direito de usar da sua liberdade para deixar de viver quando vive horrivelmente, que ninguém deve sair da sua casa quando já não pode continuar a viver nela, que o homem está na Terra como um soldado no seu posto; como se ao ser dos seres pudesse importar que um agregado de algumas partículas de matéria esteja aqui ou ali; razões impotentes, que o desespero tenaz e reflectido se não digna ouvir e às quais Catão respondeu com uma punhalada.
O triste e terrível silêncio do Ingénuo, os seus olhos sombrios, os seus lábios trémulos, os estremecimentos do seu coração provocavam na alma de quantos o contemplavam esse misto de compaixão e de pavor que cativa todas as potências da alma, que cala todos os discursos e que se não traduz senão por palavras entrecortadas.”



O Ingénuo – Voltaire 1767 (acabadinho de ler nas edições quasi, neste verão do DN)

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